Quaresma, dia 1

O Tempo da Quaresma é o período do ano litúrgico que antecede a Páscoa cristã, destinado à preparação da comunidade de fiéis para a celebração da ressurreição, que é o mais importante evento da fé.

É sempre uma comoção quando exponho que faço sacrifício de Quaresma mesmo sendo uma ateia. Eu realmente não me importo em explicar, mas acho bobo que seja necessário fazê-lo e acho bobo que, depois de gastar muitas palavras na explanação dos motivos, eu ainda tenha que lidar com a incompreensão - e, eventualmente, indignação. Mas está tudo bem, não é raro que eu cause estranhamento e compreenda que sou um pouco alheia aos comportamentos e convenções sociais padrão. Não luto contra isso, contra as indagações e contra os olhares. Eu só deixo suporem que minha sanidade pode ser discutida.

E é mesmo esperado soar inusitada a ideia de me sacrificar sem crer que minha Salvação dependa desse sacrifício, mas a verdade é que esse sacrifício é mesmo parte da minha salvação cotidiana.

Eu passei tempo demais sendo não-viva.
Eu não sei se você entende o que é ser isso; é bem difícil explicar o estado não-vivo. É uma forma de ser no universo que é não morta, mas que, nem tangencialmente, atravessa a experiência da vida, de ser um humano que existe, que tem reflexo no espelho, que tem cheiro, luz, cor, afeto, sentido, razão de existir, motivação, sorriso.

Em uma insuportável quantidade incontável de vezes, a minha vida não teve nenhum motivo e tudo o que o existia era tentar aguentar as horas que passavam até a chegada do fim do dia, mesmo sabendo que o dia seguinte seria igualmente insuportável, doloroso, moroso, lento, morno e apático. Não-viver é ser em uma experiência de devir que jamais se realiza.

Ao me olhar a casca, eu tenho ciência de que é inimaginável que alguém expansiva, tagarela e inconvenientemente simpática tenha, na verdade, usado anos da sua vida paralisada, esvaziada, deitada no escuro, pensando como deve ser a aparência e a vida no mundo lá fora. E tem tão pouco tempo que eu estou desbravando esse tal desse mundo lá fora, que me apavora a ideia de me perder e esquecer. Minha casca forte, rígida e intensa já fez muito esforço para carregar uma alma que não acreditava nas próprias chances de sobrevivência.

A quaresma é o período em que eu decido que eu sou mais forte do que os meus demônios internos. Para além da busca por criar novos hábitos, que só eu sei o quanto me parecem necessários, esse rito que pratico existe para que eu coloque em mim o poder sobre mim mesma. Para que a Vontade, no máximo de sua interpretação Schopenhaueriana, não me governe porque não é possível servir a dois senhores: ou eu ou o desejo. E eu tenho tentado me escolher.

São 40 dias (ou 42... ou 44, como acontece esse ano) em que eu tenho que olhar para a Vontade e aceitar que ela não sou eu, mas somente uma parte de quem eu sou. Por algo próximo de 40 dias eu persisto e, ainda que eu falhe em algum deles, aceito a falha, me perdoo e volto pro rumo, porque realmente preciso e quero chegar ao final do rito. Por 40 dias eu não desisto de mim.

Então, a Quaresma é a minha trilha de pão para me guiar de volta para a sanidade quando eu me perco no labirinto da minha mente. Para que sempre que eu falhar em ser viva, me escondendo de mim mesma, enquanto procuro em animações excessivamente agitadas e coloridas algum sopro de vida que me contagie, eu tenha um pouso em que me agarrar, um lembrete de que, todo ano, eu atravesso 40 dias lutando contra mim mesma e me venço. Se eu me ver tão esvaziada e sem fé em mim, duvidando da minha própria carne, eu tenho como lembrar que é só um dia de falha, não uma condenação. Que eu consigo atravessar dificuldades.

Esse é o só dia 1 de 44. Serão longos 44. É sempre difícil, mas eu tenho conseguido há três anos, desde que comecei. Espero, mais uma vez, conseguir vencer os penitentes dias, mas se eu falhar em um deles, tá tudo bem, tem sempre o dia seguinte para tentar de novo.



Adventure Time - Broke His Crown. A imagem é link para o vídeo



Comentários

  1. Os anos passam e você se mostra cada vez mais interessante, estranhamente interessante é verdade, porém intrigante, enigmática e de fato e sendo repetitivo muito interessante.

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