Wendy

Um ano aconteceu e, em algum momento que não conseguirei precisar, eu vi meu ser amorfo começar a se tornar imagem distinguível.

Ainda que não tenha sido repentino, foi de algum modo surpreendente. Foi um processo invisível e lento. e despercebido.

Algo que se assemelha ao contínuo de montar um grande quebra-cabeças: por muito tempo as peças soltas que se unem geram coisa alguma. É só ato mecânico. Incompreensível. Meramente lógico. Inconclusivo. E nessa constância de acrescentar peças em locais corretos, ainda sem ter certeza do que haverá ao final, acontece: de repente coisa alguma vira algo.

E eu vejo, percebo e sinto essa confusão que se torna algo. Há algo aqui agora, de fato. Em algum ponto desse ano que passou sem ser bem compreendido - ou sem ser bem assimilado no nível da consciência - eu costurei alma ao meu calcanhar. Uma alma que eu achei que, depois de tantos anos perdida, já se havia deteriorado. Ela existia e a descoberta me pegou desprevenida. Ela ainda existe, quem diria?

Costurei. Está aqui. Mal atada porque sou uma costureira em aprendizado. Conheço uns poucos pontos e os executo sem precisão. São ainda frouxos; Ainda frágeis. Mas estão aqui segurando uma parte viva de mim.


Ano após ano eu tento e fracasso. Fracasso na capacidade de sentir. Fracasso na capacidade de ser. Caminho na direção que me parece ser o norte, crendo que se perder o rumo posso voltar seguindo a trilha de pão que deixei pra me levar de volta ao conforto. Mas perco o rumo sempre e a trilha deixada desaparece.

Perco-me em mim. Paraliso. Morro. Insisto. Morro de novo. E nunca acho o caminho de volta. E nunca sei para onde ir.

Mas então, seguindo em frente continuamente, incessantemente e irracionalmente, pareço ter chegado em algum lugar que faz sentido. Que faz sentir. E é aterrador escrever isso. Transformar esses afetos em palavras me intimida porque fazer do abstrato coisa palpável é correr o risco de deixá-lo escorregar dos dedos e cair. E quebrar. Então eu perco o pouco que ganhei do que nunca tive.

Essa alma que parece se mover.

Seria melhor o silêncio? Seria melhor conter o corpo? Mas tenho alma presa a mim. Está aqui. E ela agora - que medo de dizer isso! - sorri.



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