Mais uma metáfora cristã

Há uns poucos anos, quando eu li A Divina Comédia, fiquei me perguntando, ao longo de todo percurso de Dante e Virgílio através do Inferno, em qual dos círculos do abismo eu seria jogada ao fim da minha vida carnal. O pensamento não saía da minha mente porque cada círculo do fosso infernal é destinado a um tipo específico de pecado. Em cada um deles, Dante encontrava e conversava com almas que foram condenadas à danação por terem cedido a vontades que se opõem às virtudes da santidade.
Cada alma carregando seu fardo.
Um fardo bem claro, referente ao específico vício a que se entregaram quando ignoraram os direcionamentos provindos do Salvador.

Acontece que, diferentemente daqueles espíritos que estavam sendo torturados com base em suas claras faltas, sabedores da singular perversão cometida, eu - indubitavelmente - tinha bem mais do que um pecado no meu currículo.
Bem mais.
Pensei em listá-los, mas desisti.
Alguns - eu supunha - sequer haviam sido catalogados por Satanás à época que Dante concebeu a obra. Era capaz de ainda nem haver destino no fosso do inferno para eles. E aí? Para onde eu iria?

As almas danadas multipecaminosas como eu ficam trocando de região no tártaro ao longo da eternidade? Haveria uma repartição de demônios cuja função era analisar os currículos das almas errantes para eleger o pecado predominante, afim de encaminhá-los ao setor referente?

Era divertido e quase inevitável ficar me perdendo em ideias sobre a organização local - e sobre a minha falta de virtudes - já que eu me distraio facilmente quando estou lendo coisas difíceis (e, naturalmente, depois eu ficava bem irada da vida por passar páginas lendo sem prestar atenção à nenhuma palavra escrita e ter de ler tudo de novo - o que colocava mais um pecado na minha lista).

Mas era uma bobagem esse pensamento. Pensar para onde eu iria. Pensar sobre quando eu iria ao Inferno.
Que bobagem!

Que bobagem que era me divertir com ideias sobre um futuro sobrenatural num inferno imaterial sem perceber que eu não deveria pensar sobre quando eu iria para qual círculo... Mas sim, sobre quando e como eu sairia deles - qualquer um deles!
Enquanto eu fazia troça sobre a dificuldade que Satanás teria para escolher meu destino, eu já estava no inferno há muito tempo e não havia notado.

Eu vago pela vida sem alma há tanto tempo que eu não me percebi escravizada pelo meu próprio sofrer. E inferno é isso. Inferno é nossa escravidão. São os nossos vícios. Nossas dores. As dores que ficam nos torturando e maltratando e matando cada dia mais um pouquinho. Aquelas dores que nós ficamos remoendo. As dores à que nos apegamos e que não sabemos como - ou se vão - acabar. O Inferno é o vício que nos governa. É o fosso em que caímos a cada distração. A cada caminhar não atento. A cada vez que nos perdemos de nós mesmos e não podemos reconhecer nosso reflexo no espelho porque nos vemos destruídos e despedaçados.

Gosto de usar referências cristãs (mesmo que passem muito longe da teologia, como no caso da obra de Dante Alighieri) como metáforas para a experiência humana. Funcionam bem porque, no fim, tudo se resume às mesmas questões. Tudo é sobre angústias humanas que se replicam geração após geração e que nós não aprendemos a governar e superar.

Na minha metáfora, o Inferno não está na eternidade, numa experiência sobrenatural que começa depois que o corpo humano perece e se torna fonte de energia para outros seres desse planetinha - uns seres certamente menos atordoados do que os Homo sapiens. O Inferno é essa vida esvaziada, sem cor, sem liberdade, sendo levada num corpo sem viço que não sabe de onde tirar forças para seguir. Inferno é a prisão da infelicidade disfarçada e distraída.

Poder olhar para o Inferno em que me deixei colocar - sem notar - é o começo da minha peregrinação pelos terraços do Purgatório.


Comentários

Postar um comentário