Itaipava

Minha mãe tinha o hábito de inventar passeios em cima da hora.

Meus pais são autônomos e autônomo não tira férias porque parar de trabalhar para viajar é, não apenas deixar de ganhar dinheiro, mas perder o dinheiro que não ganhou. E isso piora quando, por um monte de motivos - racionais e irracionais -, um dos membros do casal de autônomos é viciado em trabalho.

Para além da questão de serem o que hoje chamamos (com excesso de romantismo) de empreendedores, havia outra dificuldade para essa coisa de férias que se chamava "Anos-noventa". Para quem está localizado no tempo presente e não entende o que significa essa entidade temporal, explico (baseando-me nas minhas escassas memórias): dólar altíssimo, inflação e uma tensão constante com a construção de uma estabilidade financeira para o futuro. Se não havia tempo para férias, tampouco havia disponibilidade econômica para viagens. Não existia essa coisa de viajar por 15 dias para algum lugar super fetichizado e avião estava fora de questão. Aliás, isso ficou tão entranhado em mim que só senti que o mundo tinha mudado quando, lá pelos anos de 2010, meu irmão foi para a Disney.

- Quer dizer que gente normal também pode ir "para fora"? Para aquele lugar que aparecia no final dos meus cassetes musicais?

O cenário do cotidiano dos meus pais era esse: durante a semana era trabalho; durante o fim de semana era ficar em casa trabalhando (não sei se vocês conhecem a importância de um fim de semana para se estender roupa ou consertar aquela prateleira que está caindo) ou descansando do trabalho. Fim.

Só que ninguém vive sem lazer.

Não se pode alienar o corpo que trabalha do prazer, do descanso e do encantamento. Dá defeito. Surta. Gera Síndrome de Burnout, para usar a linguagem moderna. A máquina precisa se desconectar eventualmente. E, na minha família, essa desconexão eventual da máquina se chamava: minha mãe cismou.

Dava uma sexta-feira que fosse véspera de sábado de feriado, era batata: minha mãe montava malas para todo mundo e, quando meu pai chegava, ela avisava:

- Estamos indo para Petrópolis.

- Hein? Como assim?

- As malas e as crianças estão prontas. Só falta você tomar banho.

E assim, meu pai era impelido a se arrumar para ter prazer além da labuta.

A bem da verdade, ele sempre adorou passear e fugir da cidade, mas gostava de achar dificuldades nas coisas. Talvez por culpa. Talvez por medo. Talvez porque ele é tão ruim com planos quanto eu sou (quando temos que pensar muito, nossa tendência é desistir das coisas). Se houvesse uma discussão prévia sobre o assunto, ele iria amarrar a cara, colocar dificuldades, discordar e fazer todo mundo perder a vontade de ir. Sabendo disso, minha mãe o pegava de surpresa. E a falta de talento do homem para planejar algo se mostrava também como uma falta de talento para "des-planejar" o que já estava planejado. Então ele aceitava a imposição e lá íamos nós, abastecer o carro e pegar a estrada.

Foi com esses passeios repentinos que construí um afeto especial por um certo tipo de paisagem que, não sei por que - talvez em função da época do ano em que caem feriados em sábados ou segundas-feiras - quase sempre envolviam neblina ou serração. Minhas memórias de passeio em família têm sempre um friozinho e um dia cinza. Acabei crescendo com amor por montanhas nubladas. Também aprendi a amar um céu avermelhado, que só existe em noite de viagem, nunca nas noites comuns na minha casa (hoje eu sei que esse céu vermelho é sinal de poluição, por isso só o via enquanto atravessava centros metropolitanos ou subúrbios industriais - nunca o via em minha pacata cidade rural desindustrializada).

Mas isso tudo foi só uma introdução para contextualizar minha anedota. A história mesmo vai começar agora.

Vocês podem estar pensando que minha mãe planejava os passeios e guardava os planos para si, em segredo, expondo-os apenas na última hora para evitar aquela desistência ou discussão que eu descrevi acima. Mas não era nada disso. Ela realmente decidia passear de um segundo para o outro. Era, certamente, um grito do corpo implorando por lazer.

Sem internet, ela chutava alguma cidade próxima que pudesse ser alcançada de carro, chutava a previsão do tempo e montava as malas. Só. Só íamos: sem hospedagem reservada, sem saber onde comer no caminho e sem sequer conhecer as atrações locais.

As viagens sempre começavam pela peregrinação até achar um lugar para quatro pessoas dormirem com o custo mais baixo possível. Nunca era fácil porque era sempre madrugada e, não sei se vocês sabem, os hotéis estão sempre lotados de madrugada. Principalmente os baratos. Já caímos em muita furada assim. Também acabamos descobrindo lugares que se tornaram referências no futuro.

Essa coisa de hotel se tornou uma característica muito minha depois. Se ao longo da infância eu fiquei "invejando" minhas amigas que falavam das piscinas dos hotéis em que se hospedavam, hoje eu reproduzo exatamente o comportamento aprendido com minha mãe: eu não estou indo passear no hotel, eu vou pernoitar. Para quê pagar por algo além da cama e do café-da-manhã?

Tendo um pouso, já tínhamos meio caminho andando. Era só planejar o dia seguinte. E o plano era sempre: acordar cedo para tomar o café-da-manhã (só gente doida não aproveita um café-da-manhã que não foi feito nem servido por si mesmo!) e explorar a cidade. Sem rumo, sem GPS, sem Google. Só deriva. A pé ou de carro. Sorte a nossa meu pai amar dirigir! Nessas circunstâncias, perder-se precisa ser prazer, não problema (e, apesar do incrível senso de localização do meu pai - que por azar não herdei -, estarmos perdidos vez ou outra era parte importante das viagens).

Foi numa dessas idas de surpresa a Petrópolis (acabou que tomamos gosto por essa cidade), já sem saber que atrações visitar (possivelmente porque já conhecíamos todas? Sim. Mas também pode ser o fato de não haver um guia turístico) resolvemos esticar o passeio até Itaipava. Precisávamos comer e precisávamos de alguma atração. Se Petrópolis não tinha mais nada a nos oferecer, algum lugar próximo precisaria cumprir esse papel: a viagem Maricá-Petrópolis era muito, muito longa antes da duplicação da RJ-106, então ela tinha de valer a pena.

Depois de uns 40 minutos de carro, paramos em uma churrascaria típica de estrada na serra para almoçar e lá ficamos sabendo de um parque próximo. "Muito bonito". "Turístico". "Entrada gratuita".

Fomos.

Não exploramos o parque. Já na entrada, um cartaz nos intrigou. Ao fundo de um grande gramado, um palco em que a Orquestra Sinfônica do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com o coro, se preparava para a execução da Sinfonia n.º 9 em Ré menor op. 125 de Beethoven. Os quatro movimentos.

Quatro!

(E eu nem sabia que a sinfonia tinha quatro movimentos!)

Uma hora e pouco de duração, sentados no gramado contemplando a obra. Com coral. Com um milhão de instrumentos de naipes variados. E aquele movimento final... O final em tom de exaltação que só quem já pôde ver a "Nona" executada por sinfônica e coro é capaz de compreender.

Não me lembro de mais nada que tenha acontecido depois disso. Se voltamos para casa, se paramos para mais um café, se era noite ou dia... Porque a história desse passeio, para mim, começa e termina naquele parque, com aquela sinfônica, com aquela sinfonia.

É, ainda hoje, uma das memórias mais incríveis da minha vida. Essa e estar na Garganta do Diabo, encharcada de Cataratas do Iguazu. E eu ainda não sei qual dessas duas memórias me impacta mais.

Eu sei que essas coisas me fizeram estar sempre distraída porque é somente distraída que eu posso ser pega de surpresa por uma orquestra sinfônica executando a "Nona" de Beethoven. E eu não quero ser privada desse encantamento.

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