Sexta-feira Santa

Sexta-feira Santa é dia de introspecção, de silêncio, de calmaria e de mente vaga. Não por cristandade, porque sabidamente não me cabe. É porque esse dia é o primeiro dia de cada ano em que eu me vejo calçando meias para aquecer os pés. E porque faz um dia perfeitamente branco. E porque essa sexta-feira única tem cheiro de umidade. Um cheiro só dela, muito específico. Que não é cheiro de chuva, ou de terra molhada. Não é cheiro de fenômeno climático. Não é cheiro de atividade. É cheiro de ar úmido. Cheiro de água no ar. Cheiro de fresquinho entrando pela janela.
Cheiro de Sexta-feira Santa.

E tem um silêncio que só acontece hoje. Um silêncio muito calmo, que embala os sentires como o mar embala uma barca. É o silêncio que sustenta todas as importantes e específicas emoções que compõem a Sexta-feira Santa. Conseguem ouvir esse silêncio? Essa calma de Sexta -feira Santa? Sentem esse cheiro? E essa temperatura tão específica desse dia tão branco e fresco e pacífico e calmo e silencioso?

Esse é o dia em que o ano dá boas vindas ao Outono, que até a véspera se via tímido demais para fazer uma aparição. Ele leva dez dias para conquistar a coragem de se fazer percebido. É só nesse dia, esse dia de feriado santo, que ele se mostra ao público para acomodar-se em nossos corpos onde permanecerá por dois meses para nos permitir construir memórias de saudade. Memórias que só podem ser construídas no Outono.

Tenho muitas memórias de outono. Na verdade, tenho memórias de todas as estações, mas as memórias de outono são diferentes. Elas não têm o peso da perda e da falta. Memórias de outono são memórias leves, tão leves quanto essa umidade que fica suspensa no ar, conduzida para nosso interior através de um fresquinho que adentra janelas. São memórias de sorrisos calmos, de meias e de aconchegos. São memórias das belezas que passaram pela minha história deixando rastro. Sexta-feira Santa é dia de ser acariciada por sensações gostosas de contos bonitos construídos em outonos passados, enquanto se usava meias e afetos para acolher a mudança de temperatura que se aproximava.

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