O homem está condenado à liberdade.

Estava outro dia no museu da república, no Palácio do Catete. O palacete que até a década de 1960 era a sede do Governo Federal e casa dos presidentes da república.

Por seu valor histórico e arquitetônico, a maior parte da exposição do museu é ele mesmo: suas paredes, escadas, teto, mobiliário... De cômodo em cômodo vê-se poltronas e sofás ecléticos ou neo-barrocos, obras de arte de tempos variados e pinturas a óleo, recebidas nas primeiras décadas da nossa complicada república.
Bem ali, a palmos de distância do toque, estão arte e documentos originais.

Foi de súbito que me dei conta deste fato, de que bem ali estava tudo: paredes, escadas, teto, mobiliário... Obras de arte e documentos originais. Bem ali, a um ímpeto de distância das minhas mãos. Sem faixa amarela no chão determinando a distância mínima entre o expectador e a obra. Sem segurança. Sem aparentes punições ou repreensões. Sem nada além de um papel A4 que solicitava aos visitantes a delicadeza de não sentarem ou tocarem os objetos. Patrimônio histórico, arquitetônico e cultural protegidos de mim por nada além da força da minha consciência.

Foi nesse momento - em que me vi tão livre para transgredir normas e condutas morais - que me notei livre o suficiente para me aprisionar à minha consciência.
Tencionei-me.
Até prendi a respiração durante as horas seguintes. Horas angustiantes em que fui refreada pela autodeterminação e que contei tão somente comigo mesma para deter meus músculos e impedir que meu dedo, como um ímã, colasse em tudo aquilo que, em prol da preservação do patrimônio, eu jamais deveria tocar.







Aclarou-me a mente aquela hora.
Então entendi muita coisa sobre as coisas das pessoas. E sobre pessoas com coisas que antes eu não podia entender.

Ao me ver livre me dei conta de que a liberdade implica correr o risco de fazer (e ser) tudo. E qualquer coisa.
Até o que se quer.
Até o que não se deve.
Até o que - temos por certo - jamais faríamos se alguém estivesse olhando.
Ao me ver livre me angustiei porque notei que se não for por força da imposição, nenhuma outra força pode me deter, senão a minha consciência desamparada. Nada senão o meu autocontrole face a liberdade.




"a angústia é o modo de ser da liberdade como consciência de ser; é na angústia que a liberdade está em seu ser colocando-se a si mesmo em questão."
(SARTRE, O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica)




Uma vez livres, o que ampara nosso sistema de crenças?
Só a consciência. Solitária e aprisionada em si.
E quase nada pode ser tão doloroso quanto ter de tolher os ímpetos íntimos, não em função de forças exteriores. Não por medo. Não pela punição. Mas pela consciência de ser responsável pelos próprios atos e quereres.
A liberdade implica autoconhecimento. Autocontrole. Autoconsciência.
E as grades da prisão da mente precisam ser grossas para nos dominar. Do contrário, caímos na desgraça de, eventualmente, descobrirmos-nos.






Quem quer se ver livre da liberdade é também quem quer um líder, um mandante, um ditador ou um pai. É quem quer ser eterna criança. Porque sem a liberdade não há a angústia da escolha e, portanto, não há nem dúvida, nem culpa.

Ser livre é aprisionador.
Perceber-se livre é atinar que não há a quem possamos recorrer diante das possibilidades, senão a nós mesmos - impotentes face à obrigação da escolha.
Ser livre dói porque, quando todas as possibilidades estão em aberto, a consciência pesa antes, durante e depois.
Liberdade é angustiante e fundamental.



Comentários

Postar um comentário