Sobre os campos de trigo, os laços, a liberdade e a responsabilidade

No capítulo XXI do livro O Pequeno Príncipe somos apresentados à Raposa, uma das mais famosas personagens de toda a narrativa de Antoine de Saint-Exupéry e que injustamente se tornou alvo chacota por parte dos leitores desatentos que não notaram o tamanho das palavras do sábio bichinho.

Eu vim em defesa dessa fantástica personagem que toca meu coração todas as vezes que me volto às páginas em que aparece, onde traduz com clareza a natureza dos afetos (românticos ou não) e o compromisso embutido nessa troca de amores: a responsabilidade de amar e se deixar ser amado. Vim porque quero fazer justiça à raposinha que com simplicidade traz a mais profunda reflexão sobre consciência e responsabilidade afetiva que já li. Nós ainda não entendemos nem nos responsabilizamos pelos nossos laços, e ela não teve piedade ao exibir-nos essa verdade.

Não faço julgamento de valor do que está escrito no famoso livro sobre um fato corriqueiro da vida (cativa-me!). Só me ponho a refletir e explorar as palavras que traduzem o que às vezes parece intraduzível: as ânsias, as cores e o brilho interno que carregam as pessoas que se cativam. Mas se me permitir usar este espacinho para me colocar e trazer minha perspectiva, digo logo: tudo isso de lindo é tudo o que não me agrada. Afeto é coisa séria e de seriedade estou farta!

Não quer dizer, porém, que eu não veja beleza nessa coisa toda. Parece-me muito clara a felicidade daqueles que buscar atar-se uns aos outros e quero mais que se enlacem os que estão se sentindo muito soltos e que precisam de uns suspiros para preencher seus dias sem cor.


Imagem: Franceinfo

Eu, no entanto, prefiro uma certa calmaria. Gosto da monotonia, dos tons pastéis, do desenlace e do desapego. Para outros, porém, cativar é preciso para que vida tenha motivo e para que os dias tenham graça. Para a Raposa, faltava-lhe ser cativada porque sem amar lhe faltava vida.


Minha vida é monótona. [...] Mas se tu me cativas, minha vida será como que cheia de sol. Conhecerei um barulho de passos que será diferente dos outros.


O afeto se apoia em um monte de subjetividades não quantificáveis e padronizáveis. Ele se alimenta de poesia, pôr-do-Sol, brilho nos olhos, lembranças olfativas, músicas e borboletas no estômago. Traz, para muitos, aquela empurrão da coragem rumo ao voo infinito. Para a liberdade.
Mas nem tão livre assim.

Afeto é coisa séria.

Cativar é atar laços. Amarrar-se. Prender-se.
Pré-condição de amar é não ser livre, é não ser solto, mas estar atado, guiando e sendo guiado pelo afeto construído.


- Que quer dizer "cativar"?
- É uma coisa muito esquecida, disse a raposa. Significa "criar laços..."






Se para quem escreve essa resenha os nós sufocam, para a Raposa, por sua vez, a felicidade só seria possível não tendo mais os pensamentos e o coração livres. Ela pediu repetidas vezes ao principezinho para que eles se amarrassem entre nós bem atados porque sabia que a liberdade do desafeto não lhe agradava; queria livrar-se de ser livre para poder amar e viver com intensidade.
Atou-se para ter algo com que se ocupar mesmo nas horas de distração.


Se tu vens, por exemplo às quatro da tarde, desde às três eu começarei a ser feliz.


Não estará compreendendo o que ela quer dizer o leitor que acreditar que se fala sobre aprisionamento, ansiedade, pressa, insegurança ou solidão: é sobre o preenchimento dos espaços livres, sobre trocas e sobre reciprocidade. Uma vez atados os amados, há mais ação individual, ou vida singular. É sempre troca, dos risos às lágrimas. Estamos amarrados aos donos do nosso afeto em toda ação e emoção: presença, ausência, conquistas. Feridas. E curas. Não restará sensação individual aos seres que se enlaçam nos afetos. Não ficarão livres sequer os detalhes - dos mais bobos - de serem compartilhados. São, os cativados, parte um do outro, nas coisas grandes e nas pequenas.

Atados. Presos.


Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...


Trecho de Geni e o Zepelim - Chico Buarque
Cativar é escolher abrir mão da liberdade de sentir sozinho e deixar que alguém nos roube as intenções, os pensamentos e as vontades.

Nos tornamos responsáveis pelo sentir alheio, não no sentido de haver obrigação com sentimentos e com a vida de alguém — porque não somos nós os culpados pelas suas ações e expectativas —, mas no sentido de entender que somos nós a causa de muitas comoções.

É responsabilidade no sentido de tomar ciência. Ciência de que quando enlaçados não estamos mais sós então — enfim! — não mais somos livres.


- Tu te tornas eterno responsável por aquele que cativas.


E não se assuste, leitor, com esse peso da eternidade. Esse tempo a que a raposinha não é eterno em duração, mas é eterno por ser total.
A eternidade é o todo.
A totalidade do tempo em que o laço se mantem apertado. Eterno porque está presente do início ao fim do amor construído.
Nos tornamos responsáveis por aquele que cativamos enquanto estiver cativado, na eternidade do afeto que pode durar para sempre, por uns meses, ou alguns minutinhos.


- Mas tu vais chorar! disse o principezinho.
- Vou, disse a raposa.
- Então, não sais lucrando nada!
- Eu lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo.


Talvez esse texto, pelo exagero, faça fazer parecer que afetos são dolorosos fardos que carregamos por consequência de, desavisadamente, nos permitirmos cair numa armadilha da vida afim de encobrir o tédio e a solidão. Fardos que nos punem e nos enjaulam e que seria melhor que fossem evitados.
Não é assim que os julgamos — eu e minha querida Raposa —, já que muito valoramos os laços e reconhecemos bem sua beleza e tamanho. Se essa divagação despropositada soou misantrópica e fria, me perdoem, pois não era esse o intuito. E se aconteceu, foi por culpa da minha alma desapegada e do meu coração sem porto.

Só quis nadar sobre as palavras de um sábio mamífero fictício que por dar o merecido valor aos laços afetivos, tentou nos mostrar que eles são coisas grandes, importantes e recíprocas. Que a partir do momento que são construídos, por esforço ou por descuido, requerem consciência.

E que — muito melhor do que tentou descrever Vinícius — são eternos enquanto duram. Então é uma boa ideia cuidarmos deles para que sejam luminosos enquanto existirem e que mesmo na circunstância do fim, a dor de reaprender-se solto seja pequena perto da beleza daquilo de bom que fica.
Que se houve uma história de suspiros ansiosos, bochechas rubras e sorrisos largos, então já está bom.


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